Emprego Militar do Sistema de Posicionamento Global (GPS)

Maj. Davi Rogério da Silva Castro

Artigo publicado na revista SPECTRUM do COMGAR (número 4 de novembro de 2001)

O GPS vem ganhando mais e mais adeptos desde seu batismo de fogo na Guerra do Golfo e atualmente pode ser considerado um recurso de utilidade mundial. Essa evolução certamente não fazia parte da sua concepção inicial, que tratava do emprego de sistemas espaciais no auxílio a navegação de aeronaves militares e mísseis balísticos. Mas hoje, trinta anos depois, presenciamos um fenômeno de inversão em que as aplicações civis do GPS tornaram-se tão importantes que praticamente esquecemos sua origem bélica.

Este artigo pretende apresentar a fragilidade do GPS frente à atuação de um sinal interferidor (“jamming”) em um cenário tático genérico. A baixa resistência do sistema nos leva a perguntar quais seriam as alternativas disponíveis para tornar o GPS minimamente íntegro, confiável e disponível nas operações militares. A resposta se seguirá mediante a descrição de algumas das técnicas mais relevantes para a solução do problema.

Disponibilidade Seletiva

Em maio do ano 2000 o governo americano decidiu retirar o sinal S/A (“Selective Availability” – Disponibilidade Seletiva) das transmissões do GPS. Este sinal foi originalmente concebido para introduzir um erro nas informações geradas pelos satélites destinadas ao público em geral, degradando a precisão das medidas de posição e tempo.

Assim, os americanos pensavam estar se protegendo da eventual aplicação do GPS para guiamento de armas por países não aliados (a política americana trata o GPS como um recurso crítico de defesa, tanto quanto um recurso comercial e científico). Entretanto, a pressão exercida pela comunidade civil, que passou a usar o GPS para as mais diversas aplicações e desejava um sistema tão preciso quanto possível, conseguiu fazer o Departamento de Defesa americano (DoD) concordar com a desativação do S/A.

Com esta decisão o Serviço de Posicionamento Padrão (SPS – “Standard Positioning Service”), de uso civil, passou a contar com uma precisão bastante próxima da obtida pelo Serviço de Posicionamento Preciso (PPS – “Precise Positioning Service”), de uso exclusivo militar. Alguns resultados obtidos no Centro Técnico  Aeroespacial (CTA) são apresentados na figura 1 e mostram que o erro médio de posicionamento gerado pelo GPS está entre 24,72 e 25,54 metros com S/A e 4,27 e 7,09 metros sem S/A, com nível de confiança de 95% [2]. Além disso, os erros de posicionamento sem o S/A têm uma variância estacionária pequena (entre 0,16 e 0,36 metros), ao contrário dos erros de posicionamento com S/A (variância entre 17,37 e 38,91 metros).


Figura 1: Comportamento dos Erros de Posição do GPS com e sem S/A [2].

A decisão de retirar o S/A, do ponto de vista comercial, significa a possibilidade dos americanos terem de volta grande parte do dinheiro aplicado no desenvolvimento com a venda de receptores para o mundo todo. Os Estados Unidos já investiram 21 bilhões de dólares no GPS e têm uma despesa  anual de 600 milhões de dólares com sua manutenção [5]. Mas a concepção original do sistema é militar, muitos recursos foram gastos nessa direção (estima-se que 20.000 plataformas estejam equipadas com receptores GPS e outros 100.000 portáteis estejam com as tropas [1]). Quais devem ser então as novas alternativas para garantir acesso ao sistema pelas forças militares americanas e negar seu uso aos adversários?
 

NAVWAR

A primeira abordagem para resposta à pergunta seria a separação dos sistemas civil e militar. Isso tem sido levado em consideração, principalmente no meio civil, que precisa ainda de garantias sólidas para continuar investindo na maciça utilização do sistema, mas é uma solução cara e que levaria anos para ser implementada. A suspensão do código S/A leva a crer que os americanos estão realmente dispostos a manter o sistema atual.

Portanto, devemos esperar que o DoD empregue todos os esforços na chamada “Navigation Warfare” (NAVWAR).

A capacidade “anti-jamming” oferecida pelos sistemas de espalhamento espectral torna-se praticamente sem efeito no caso do GPS (ver box “Breve descrição do GPS”). A distância entre transmissores e receptores é tão grande que um interferidor não precisa de muita potência para causar problemas. A figura a seguir mostra um cenário tático simplicado e os principais fatores a serem considerados no cálculo da efetividade de uma ação de interferência:






Figura  2: Parâmetros envolvidos no cálculo da relação J/S em um cenário tático simplificado.
 

Podemos tomar a fórmula (simplificada) para cálculo da relação “jamming”/sinal em dB para aproximar algumas relações entre distância do interferidor e potência de transmissão requerida. Alguns valores típicos são: Pt + Gt = 25 dBW, Ds = 11.000 NM = 20.372.000 m, Gr = 25 dB. Supondo ainda que o ganho da antena do receptor na direção do “jammer” é 8 dB, chegamos à conclusão que um transmissor de 100 W (20 dBW), com antena omnidirecional (3 dB) é capaz de interferir nos receptores civis que estiverem em um raio de 10 km. Este cálculo é apenas uma aproximação, mas já é possível ter uma idéia do que pode ocorrer em um campo de batalha onde estejam sendo utilizados interferidores bem projetados.

Receptores GPS exibem diferentes níveis de vunerabilidades a diferentes tipos de formas de onda interferidora, seja de barragem, de ponto ou de varredura, modulada em amplitude, fase ou freqüência, etc. Essa vulnerabilidade é extremamente dependente do cenário, do modo de recepção e da antena [4]. As principais técnicas disponíveis para minimizar os efeitos da ação intencional (“jamming”) e/ou de uma simples interferência são as seguintes:

            a) Filtragem no Receptor (“frequency domain filtering” e “temporal filtering”): reduzem em até 30 dB o efeito da interferência e são de fácil implementação, mas inserem atraso no processo de aquisição, atenuam o sinal GPS e não conseguem fazer frente a interferência faixa larga ou a múltiplos interferidores de varredura.

            b) Filtragem Espacial (“spatial filtering”, “null steering” e “beam steering”): a filtragem no domínio espacial pode ser obtida pela adaptação eletrônica do diagrama de irradiação da antena, pelo chaveamento e/ou cancelamento de lóbulos etc. Esta técnica apresenta problemas de implementação principalmente devidos aos tamanhos das “arrays” de antenas (banda L), necessidade de sincronização com a posição dos satélites para ajuste do apontamento e dificuldade de se contrapor a vários interferidores simultaneamente. Torna-se viável apenas para grandes plataformas, como navios, por exemplo.

            c) Cancelamento em amplitude ou fase (“amplitude/phase cancellation”): nesta técnica são empregados dois conjuntos de antenas separados verticalmente que recebem, individualmente, cópias do mesmo sinal defasado em amplitude ou fase. A combinação dos dois sinais permite a separação entre a interferência e o sinal do GPS. Como na técnica anterior, não é efetiva contra vários interferidores simultaneamente e é extremamente sensível à variação de atitude da plataforma. Chega a produzir de 20 a 30 dB de supressão de fontes interferidoras.

            d) Cancelamento em polarização (“polarization anti-jam”): é a técnica mais interessante do ponto de vista de independência da atitude da plataforma, contraposição a múltiplas fontes de “jamming” e facilidade de implementação, mesmo em pequenos receptores. Nesta técnica o circuito de recepção provoca a anulação de todos os sinais que não tiverem a mesma polarização do sinal do GPS, ou seja, que não forem RHCP (“right hand circular polarized”). O resultado é a supressão de todo tipo de interferência, inclusive banda larga. Chega a 40 dB de eficiência mas provoca também a atenuação do sinal GPS.

            e) Integração com plataforma inercial: o acoplamento do GPS a um inercial (ou IMU/INS, “Inertial measurement unit/Inertial navigation system”) é a melhor solução para emprego em plataformas com altas taxas de manobrabilidade como mísseis e aeronaves de caça. O conceito de integração pode considerar a inicialização do GPS com informações geradas pelo INS para aprimorar os tempos de aquisição e rastreio ou pode ser usada a técnica de filtragem de Kalman para fusão dos dados provenientes dos dois sistemas. Nesta última aplicação os dois sistemas trabalhariam simultaneamente fornecendo informações ao filtro, que se encarregaria de utilizar somente as informações mais relevantes.
 

Conclusão

Neste artigo foram discutidas as vulnerabilidades do GPS sob o ponto de vista das interferências intencionais (“jamming”) e apresentadas algumas soluções técnicas que atualmente vêm sendo publicadas nas fontes abertas. Infelizmente, não foram encontradas referências aos recursos que efetivamente estão sendo implementados nas armas americanas. Vale comentar que as conferências sobre o assunto, realizadas nos EUA, são de caráter secreto.

Apesar do título, as discussões se aplicam também às situações de emprego civil do GPS. Os requisitos quanto a integridade, confiabilidade e disponibilidade de um sistema de auxílio à aproximação e pouso, por exemplo, são tão rigorosos quanto os de guiamento de um míssil. Portanto, em nome da segurança, os efeitos de interferência devem ser levados a níveis muito próximos de zero e medidas devem ser tomadas para proteger o sistema.

Enfim, seja qual for a aplicação, militar ou civil, uma dúvida deve estar sempre norteando as decisões: o GPS é confiável?
 

Breve descrição do GPS

O segmento espacial do sistema é constituído por 24 satélites que orbitam a Terra em um período de 12 horas a aproximadamente 11.000 NM de altura [1]. Existem seis planos orbitais, igualmente espaçados de 60 graus, cada plano orbital é ocupado por 4 satélites, permitindo, teoricamente, uma visibilidade entre 5 e 8 satélites em qualquer parte do globo terrestre. Cada um dos satélites em órbita transmite a hora certa juntamente com sua posição exata e outras informações. O receptor, por possuir a hora sincronizada com o que é difundido pelo satélite, computa o tempo percorrido entre a transmissão e recepção do sinal e o converte em distância, a chamada “pseudo-range”. A posição do receptor (X, Y, Z), tomando o centro da Terra como origem, é calculada quando quatro satélites estiverem visíveis.

É importante ressaltar que dependendo da geometria relativa dos satélites, o sistema de equações pode não ter solução. Por outro lado, se mais de quatro satélites são observados simultaneamente, existirá um conjunto de quatro que fornecerá a solução com menor erro.

As freqüências portadoras utilizadas no link satélite-receptor são conhecidas como L1 (1.575,42 MHz) e L2 (1.227,60 MHz) com polarização circular à direita (RHCP, “right hand circular polarization”), o que diminui a dependência do receptor quanto ao aspecto de orientação da antena e minimiza os efeitos da propagação na atmosfera.

O receptor GPS processa um sinal extremamente fraco (tipicamente –120 dBm a –136 dBm), praticamente no mesmo nível de um ruído. Para minimizar a dificuldade de se trabalhar com sinais dessa ordem de grandeza, é utilizada a técnica de “espalhamento espectral”. Basicamente, o sinal original é multiplicado por um sinal código de freqüência mais alta, gerando o efeito de “espalhamento”. O receptor recupera o sinal original a partir da combinação do sinal que chega na antena com uma cópia do mesmo código usado na  transmissão.

As larguras de banda resultantes são 1,023 MHz para o sinal de aquisição (C/A, coarse acquisition) e 10,23 MHz para o sinal de precisão (P(Y), precision), este último criptografado, para aplicação exclusiva militar. Ao compararmos esses valores com a largura de banda necessária para transmissão dos dados, apenas 50 Hz, percebemos a origem do ganho de processamento resultante do espalhamento. Ou seja:

para o sinal C/A e 53 dB para o código de precisão. Com este ganho de processamento, a potência do sinal no receptor sobe para níveis mais tratáveis.

O código de espalhamento para o sinal C/A tem período de repetição de apenas 1 ms, portanto fácil de ser sincronizado, modula a portadora L1 e está disponível para todos que quiserem construir um receptor GPS. Já o código militar, que é secreto e modula L1 e L2, tem período de 7 dias, o que torna complicadíssima a tarefa de aquisição. Por essa razão, os receptores que trabalham com o sinal P utilizam também o sinal C/A como forma de viabilizar a sincronização no código mais longo. Cada satélite possui um conjunto de códigos específico, por isso diz-se que o sistema emprega  CDMA (“Code Division Multiple Access”), ou seja, acesso múltiplo por divisão de códigos.
 

Definições e Acrônimos

 DGPS – “Differential GPS”. Recurso que utiliza estações de solo transmitindo sinais GPS como se fossem satélites (“pseudolites”). O resultado é o aumento da precisão e confiabilidade da informação de posição nas proximidades, permitindo, por exemplo, o pouso de precisão.

Galileo System – Sistema europeu para navegação por satélites de aplicação civil. Pretende disponibilizar 30 satélites em órbita de 24.000 km e entrar em operação a partir de 2008. Esse sistema deve ser capaz de receber os sinais do GPS e do GLONASS e oferecer precisão de 4 m com alta confiabilidade.

GLONASS – “GLObal NAvigation Satellite System”. Sistema Russo de navegação por satélites, semelhante ao GPS americano. Utiliza diferentes freqüências para cada um dos satélites de sua constelação (FDMA, “Frequency Division Multiple Access”).

GNSS – “Global Navigation Satellite System”.

NAVSTAR – “Navigation Satellite Timing and Ranging”.

NAVWAR – “Navigation Warfare“. Os  conceitos de Guerra Eletrônica aplicados à navegação moderna foram resumidos no termo NAVWAR e são intimamente ligados às conhecidas Medidas de Proteção Eletrônica (MPE) e pelas Contra-Medidas Eletrônicas (CME).
 

Referências

[1] David Almeida Alcoforado, “Confiabilidade do Sistema de Posicionamento Global (GPS)”, Universidade Gama Filho, Rio de Janeiro, 2000;

[2] L. C. L Rosa,  F. Walter e D. R. Méndez, “Efeito Imediato do Desligamento do S/A nos Erros de Posicionamento de um Usuário do Sistema GPS”, Divisão de Engenharia Eletrônica do Intituto Tecnológico de Aeronáutica, 2000;

[3] Don Herskovitz,  “GPS Insurance – Antijamming the System”, Journal of Electronic Defense, December 2000;

[4] Mario M. Casabona and Murray W. Rosen, “Discussion of GPS Anti-jam Technology”, Electro-Radiation Inc., Fairfield-NJ, 1999;

[5] Dr. Stanley B. Alterman, “GPS Dependence: A Fragile Vision for US Battlefield Dominance”, Journal of Electronic Defense, September 1995;

[6] Don Herskovitz, “And The Compass Spun Round and Round – The Coming Era of Navigation Warfare”, Journal of Electronic Defense, May 1997;

[7] Rodolpho Vilhena de Moraes, Kevin Theodore Fitzgibbon e Fernando Walter, “O Sistema GPS”, Revista ITA Engenharia Vol. I, n° 1, Outubro de 1994;


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